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Rua
Almirante Mourão de Sá, entre Paripe e Fazenda Coutos, é um dos pontos
de tensão do Subúrbio por conta da guerra do tráfico. Bairros já
registraram 34 homicídios em 2014 (Foto: Evandro Veiga)
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Já
passavam das 23h quando a aposentada Olindina Serra acordou assustada
com o barulho de tiros disparados próximo à sua residência, na Rua 05,
em Fazenda Coutos. Mesmo com o número de estampidos – seis, até onde
contou –, Olindina virou para o outro lado e voltou a dormir. “Quem mora
aqui já se acostumou. A gente se assusta no primeiro tiro e depois só
espera terminar. É a Faixa de Gaza do Subúrbio, né? Quem não tem como
mudar, tenta se acostumar”, afirma a aposentada.
Apesar de não haver nenhum logradouro chamado
Faixa de Gaza em Salvador, o apelido é comumente utilizado por moradores
para designar vias que separam áreas dominadas por grupos criminosos em
conflito constante. Na lei silenciosa das Gazas espalhadas pela
capital, quem mora em um lado não cruza para o outro, norma que deve ser
obedecida sob pena de retaliação.
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Parede com buracos de bala é sinal da violência que assola o Subúrbio (Foto: Evandro Veiga)
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A
Gaza suburbana citada pela aposentada é a Rua Almirante Mourão de Sá,
uma via com cerca de 1,5 km que separa os bairros de Paripe e Fazenda
Coutos. No trecho intermediário da via, na altura da “afamada” Rua da
Paz do Bate Coração, algumas casas são marcadas por pichações de facções
criminosas e buracos de bala, resultado das constantes disputas entre
bandidos dos dois bairros.
“Infelizmente, a gente tem que viver com essa
situação. Basta aparecer algum desconhecido na área que os bandidos
aparecem para saber quem é. Eles ficam revidando: um grupo do Bate
Coração vem e assalta alguém aqui na Fazenda Coutos. Depois, um grupo
daqui vai lá e atira em alguém”, conta uma moradora, sob anonimato. “Só
que a população, que não tem nada a ver, fica no meio”, complementa.
No fim de semana, apareceu mais uma candidata a
figurar como Gaza do Subúrbio: na rua Guiné, em Periperi, seis pessoas
foram assassinadas. Com a chacina na Guiné, Periperi registrou 31
homicídios em 2014, passando a liderar a estatística por bairros em
Salvador, à frente dos vizinhos Paripe e Lobato, ambos com 27 homicídios
registrados, e empatando com São Cristóvão, onde também foram
registrados 31 crimes de morte.
Autoestima
A
tenente Jéssica Souza, comandante da Base Comunitária de Fazenda
Coutos, não gosta do apelido dado à Mourão de Sá, especialmente após o
trabalho que sua equipe vem desenvolvendo na área. “Nós lutamos contra
essa situação aqui, mas não gosto do termo Faixa de Gaza.
Acredito que esse tipo de apelido só contribui para rebaixar a autoestima dos moradores”, diz.
Segundo
a tenente, “quantitativamente, é visível a redução da criminalidade”,
desde que a base foi instalada. “Estamos desenvolvendo a cultura de paz,
projetos e ações, como a patrulha comunitária, e isso tem repercutido
até mesmo do lado de lá (Paripe)”, afirma.
Porém, na contramão da tal “cultura de paz”, a
cultura do medo tem prevalecido na vizinhança. Situação que se agravou
ainda mais com o sequestro de jovens na região, ocorrido nas últimas
semanas. Isso afetou, principalmente, a rotina de crianças e
adolescentes. “Minha mãe me disse para não ir à escola. A gente vê o que
acontece aqui, todo dia. Agora, com essa onda de sequestros, o medo
aumentou ainda mais. Tem colega levando até arma para a escola”, afirma
um estudante de 13 anos, que não foi à aula semana passada.
Bonocô
Há
quem diga que o “sistema” no Subúrbio Ferroviário é diferente, mas, ao
contrário do que se pensa, as Faixas de Gaza não são exclusividade da
periferia de Salvador. Na área central da cidade, a Avenida Bonocô
representa a linha que separa dois dos maiores polos do tráfico de
narcóticos, os bairros de Cosme de Farias e Campinas de Brotas.
A
guerra entre os bairros ligados por uma passarela ganhou notoriedade
após a operação que resultou na morte do traficante Tiago Guimarães
Pinto, o Titanic, em fevereiro. Contudo, seis meses após a morte do
chefe do tráfico de Cosme de Farias, moradores e funcionários de
empresas no entorno ainda temem a travessia quando a noite se aproxima. E
a maior parte das pessoas ainda vive sob a lei do silêncio. “Todo mundo
aqui sabe o que acontece, mas a gente não pode ficar comentando”,
explica um trabalhador.
Guerra fria
Para
o capitão Edno Amaral, da 58ª CIPM (Cosme de Farias), a intensificação
do policiamento na área reduziu bastante o número de ocorrências,
contudo, o medo disseminado na população nos últimos anos contribuiu
para uma espécie de trauma que faz com que não se sintam à vontade para
falar abertamente sobre o assunto.
“Tivemos problemas com aquele
trecho, no passado, mas o que há ali hoje em dia é uma ‘guerra fria’.
Os líderes do tráfico que dominavam aquela região amedrontavam os
moradores. A maioria silencia para assegurar uma estada sem sustos, pois
essa mesma maioria não tem condições de se mudar”, avalia o capitão.
Contudo,
quem hoje percebe uma certa calmaria na Faixa de Gaza da Bonocô lembra
como era o clima nos períodos de conflito aberto. “Morei em Campinas (de
Brotas) por mais de 30 anos e hoje venho, de vez em quando, visitar
meus filhos”, afirma o taxista Emerson Rodrigues. Segundo ele, houve um
tempo em que tinha olheiros dos dois lados. “Bastava cruzar a passarela,
que era voz de assalto, tiroteio. Foi por causa de situações assim que
decidi me mudar”, explica.
Apesar da mudança, o taxista não
conseguiu se livrar do clima de insegurança. “Saí daqui para o Imbuí e,
lá perto, na Boca do Rio, tem uma Faixa de Gaza também”, aponta.
Cessar-fogo
O
trecho ao qual Emerson se refere é a altura da Avenida Jorge Amado que
separa as invasões do Golfo Pérsico e Irmã Dulce. “Há algum tempo era
difícil viver por aqui, não dava para pisar do lado de lá sem ser
assaltado. Todo dia a gente ouvia falar de alguma morte. Graças a Deus,
acalmou”, relata uma vendedora, que mora na localidade do Golfo Pérsico.
A
rivalidade, mais uma vez, envolve o domínio de pontos de venda de
drogas. Assim como no Subúrbio, as ações criminosas se baseavam no
sistema de revide. “Estava insuportável. Aconteceram chacinas aqui, nas
ruas. Durante o aniversário de uma vizinha, um grupo veio do outro lado e
incendiou a moto de um dos convidados. A gente sentia um clima de
guerra na pele. Faz algum tempo que a situação melhorou, mas a fama
continua”, conta uma moradora.
O major Gabriel da Silva Neto,
comandante da 39ª CIPM (Boca do Rio), garante que o cessar-fogo é
resultado das ações afirmativas que a Polícia Militar tem feito na
região. “Temos tomado medidas preventivas e intensificamos o
policiamento. As estatísticas mostram uma melhora grande. Isso também
faz parte de um diálogo com a comunidade, que acaba ajudando nesse
trabalho”, relata Silva Neto.
Palestina soteropolitana também pede uma trégua
Segunda-feira
da semana passada, quando o povo palestino teve uma trégua com o
anúncio de cessar-fogo feito por Israel, após um mês de ataques, em uma
Palestina muito distante do Oriente Médio – aqui mesmo, em Salvador –
civis lamentavam mais uma baixa gerada pela guerra diária do tráfico. “A
gente também precisa de trégua aqui. O clima está insustentável. Já era
o tempo em que podíamos andar pelas ruas sem medo”, afirma um taxista
local.
Presidente da associação comunitária Zumbi dos Palmares e
morador da Palestina soteropolitana há 40 anos, José Antônio Souza
afirma que o antigo conjunto de fazendas ganhou esse nome em referência
às semelhanças entre a história de luta dos posseiros que formaram o
bairro e o perfil aguerrido do povo palestino. “Foi por causa da luta do
povo da Palestina pela sua independência e reconhecimento”, conta.
Apesar do clima interiorano e da receptividade, especialmente dos mais
antigos, os relatos de medo e tensão diante dos constantes conflitos
entre facções que atuam na área compõem o retrato da guerra. “O medo
começa na hora de botar o pé fora de casa. Volta e meia tem um tiroteio
nas baixadas. Essa semana mesmo mataram um rapaz. Um antigo vizinho teve
que fugir para o interior jurado de morte pelos traficantes”, lista um
morador.
Para José Antônio de Souza, da Zumbi dos Palmares, a
onda de violência que tem tomado conta da Palestina nos últimos anos é
um reflexo da falta de oportunidades e atrativos para os moradores,
principalmente os mais jovens. “Aqui, nós não temos áreas de lazer e
entretenimento. Não temos uma escola técnica que possa dar cursos e
abrir as portas dos jovens. Como é que a gente quer que as coisas mudem
se o poder público esquece a nossa existência?”, questiona o líder
comunitário.